As viagens do Mercedes de Sócrates

Uma das decisões mais curiosas que José Sócrates teria supostamente tomado para usar o dinheiro que (dizem os jornalistas com autoproclamado acesso a dados da investigação) o amigo Carlos Santos Silva lhe passava para as mãos era a de obrigar o motorista a transportar umas notas para França, de carro, aconchegadas num envelope. A viagem de ida e volta, garante o guia Michelin, duraria, se o condutor não dormisse, umas 38 horas. Além disso custaria 726 euros em gasolina consumida pelo Mercedes Classe S que João Perna tinha para guiar, mais uns 220 euros em portagens. Totalizaria 946 euros. Está cara a boa vida!...
Um bilhete de avião custaria uns 280 euros e dava para ir e voltar no mesmo dia. O próprio Sócrates, em vez de escravizar o motorista, poderia aproveitar as suas viagens semanais a Lisboa para comentar a política nos estúdios da RTP e enfiar uns milhares de euros no bolso do casaco. Mesmo que vissem as notas no raio X do aeroporto da Portela, alguém o interrogaria?...
Por outro lado, com tanta portagem e tanto pórtico a registar e a fotografar os movimentos e a matrícula do automóvel, ao longo de 3600 quilómetros por dose, como é que estes notáveis e hipotéticos bandidos passaram despercebidos à polícia? Ou não passaram?
Enfim, o processo seguido nessa viagem pela Península Ibérica até à Cidade das Luzes talvez fosse um plano inteligente... Mas não é isso que me interessa aqui...
Interessa-me, isso sim, é nenhum jornalista poder, neste momento, confirmar ou desmentir a veracidade dessa ou qualquer outra informação. Qualquer movimento nesse sentido está sob a alçada da violação do segredo de justiça, coisa que só não é problema, pelos vistos, se servir para louvar o Ministério Público.
E qualquer publicação que se atreva a analisar criticamente as supostas informações da investigação será acusada de frete político ao PS, boicote à justiça e cumplicidade com corruptos, ladrões do povo...
Interessa-me também que daqui até ao momento longínquo em que aconteça um julgamento, mesmo que este facto do Mercedes em constante vaivém Lisboa-Paris e outros episódios entretanto noticiados acabem por não constar da acusação, na mente dos juízes que decidirão a causa o peso do noticiário que credibilizou eventuais bizarrias não desaparecerá e influenciará, decerto, a sentença.
É evidente que Sócrates e Santos Silva têm muito que explicar: há por ali, aparentemente, dinheiro a mais a circular e a utilização criminosa do Mercedes nessas viagens a Paris pode ser verdadeira. Mas neste momento o que mais me revolta é a falta de lealdade da Justiça – se é assim com Sócrates, como será com o cidadão anónimo?

in Diário de Notícias, 23 de dezembro de 2014

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