Combater pela liberdade a dar tiros à liberdade

Infetamos de paixão, de ideologia e de religião o debate sobre a resposta europeia ao terrorismo, a caminho da legitimação de uma deriva securitária que fará de todos nós uns prisioneiros do aparelho policial e militar que, cinicamente, se montará para defender a liberdade europeia. Estamos, portanto, lixados.

O combate ao terrorismo islâmico na Europa, tal como a luta contra qualquer forma de crime organizado, passa por coisas óbvias, corretas: detetar e eliminar a circulação ilegal de armas na Europa; partilhar informações entre polícias; recusar pagar raptos a terroristas; estancar fontes de financiamento destas organizações; restabelecer medidas básicas de segurança civil aplicadas durante décadas de atentados frequentes na Grã-Bretanha, Espanha, Alemanha e Itália quando o IRA, a ETA, o Baader-Meinhof, inúmeros grupos radicais (alguns a soldo de serviços secretos ocidentais) e a máfia abatiam pessoas ou faziam explodir bombas nas ruas.

Há dois meses fui a Londres. Na primeira viagem de metropolitano sentei-me frente a um casal muçulmano. A mulher guardava dois sacos de plástico, enormes. O homem, barba grande e gorro islâmico na cabeça, tomava conta de um menino e de uma menina.

Ele brincava com as crianças. O miúdo, talvez com uns seis anos, levava uma pequena bola que o pai fingia tentar roubar das suas mãozitas, ágeis a esconder o brinquedo atrás das costas. A cada insucesso paterno sucedia uma onda de gargalhadas infantis que a menina, quatro ou cinco anos, abafava ao esconder a cara numa saia curta, de tecido escocês, impulsivamente levantada até à cara enquanto fazia trepidar no ar, alegre, as duas pernitas, protegidas por collants com desenhos geométricos.

Para saírem na estação de destino os filhos, um de cada lado, levantaram-se e deram a mão ao pai. Avançaram para a plataforma, aos risos. Atrás, exatamente dois passos atrás, focada pelo meu olhar de espanto, seguiu a mulher, a carregar os sacos de compras, totalmente coberta por uma burca cujo rendilhado lhe escondia os olhos, a alegria, a tristeza, a humanidade.

Quando vi a mulher de burca em Londres senti-me indignado: aquele vestuário é uma humilhação sexista. Mas para ela, se calhar, sexismo é passear na rua sujeita a olhares concupiscentes ou a piropos machistas. Em Londres, cidade historicamente habituada a lidar com o terrorismo, cheia de policiamento, a burca é permitida.

Em Paris a burca é proibida desde 2010. Em França prendem Dieudonné M"Bala M"Bala pelas coisas horríveis que ele diz. Em França, onde bravamente se defende o direito ao insulto do jornal Charlie Hebdo, combate-se o terrorismo islâmico com tiros à liberdade. Não pode dar bom resultado

in Diário de Notícias, 20 de janeiro de 2015

Sem comentários:

Enviar um comentário